sexta-feira, 29 de junho de 2012

Literatura de Cordel


O Grande Debate de Lampião com São Pedro


Leremos hoje um rimance de cordel escrito por um dos mais famosos poetas do Cordel Nordestino, José Pacheco da Rocha, pernambucano, falecido em 1954, o poema O Grande Debate de Lampião com São Pedro. Trata-se de uma raridade no cordel, pois os versos são escritos não em sextilhas ou septilhas, mas em décimas de sete sílabas. Lembro ao leitor que, em sendo o cangaceiro Lampião considerado quase um semideus, muito duvidavam mesmo de que fosse possível matá-lo, de que ele fosse mortal, razão pela qual grande parte do poema - nada menos que dez décimas, ou seja, cem versos, se refere às perambulações do Poeta por vários lugares, alguns com nomes bem sertanejos - Cambito Quebrado (perna quebrada), Baixa da Égua, Pilão Sem Boca, Brechas da Gata - outros sem dúvida que remetem ao Reino da Poesia - Casa da Madrugada, Terra do Sol, Reino do Mestre Espaço, ou o lugar onde se enconta a Deusa Flora.

É uma sátira muito bem feita, onde o Céu, ou o Paraíso, a Morada do Deus cristão e sua Corte de santos, é mostrada como uma espécie de fazenda ou mesmo um sítio sertanejo onde não falta sequer o cigarro caipira - pelo menos dois santos fumam no rimance, São Pedro e um tal "São Panta", que deve ser o São Pantaleão, ou Sâo Panta Leão, como escrevem alguns. O clima de uma casa tranquila da zona rural nordestina é quebrado no finalzinho do jantar do porteiro do Céu, que já está no cafezinho quando ouve as pancadas na porta. A demora em atender o freguês, ou cliente, que na verdade não seria um cliente digno daquelas hostes pois era Lampião, faz com que possa o suposto Céu cristão ser comparado ainda a uma repartição do Serviço Público; há inclusive um momento em que São Pedro trai alguma insatisfação com o seu trabalho: "Triste do homem  empregado, que só lhe chega aperreio!" Em outro momento, o cliente, se  sentindo mal atendido, chega a lembrar ao "funcionário público" que ele,pode ser demitido. Interessante é a existência de muitas armas brancas no Céu de Pacheco, alguns santos punham uma faca na cinta, tal como faziam cangaceiros, ou fazem os feirantes nordestinos quando precisam amedrontar possíveis malfeitores. Mas sem dúvida a maior semelhança entre o Céu de Pacheco e um sítio sertanejo é quando se manda, em ocasiões diferentes, ora que se "Arranque um pau do quintal", ou ainda que se "Arranque um pau do chiqueiro". Naturalmente que o bom homem que era o Pacheco só poderia imaginar a Fazenda Celsetial como semelhante aos sítios sertanejos de pessoas boas, cristãs e honestas que ele conhecia aqui na Terra. Concordo plenamente com ele!

O estrofe final nos deixa a entender que o presente cordel era cantado em feiras nordestinas, pois ali há a clara menção a um pedido de gorjeta aos espectadores. Eu mesmo já ouvi esse cordel ser cantado, de forma belíssima, numa feira em Patos, numa gravação dos Discos Marcus Pereira.

SOBRE O AUTOR:
José Pacheco.


Sinopse da vida e obra de um dos mestres do cordel.

"José Pacheco da Rocha, ou José Pacheco, como é mais conhecido, nasceu no Município de Corrientes, em Pernambuco, residindo algum tempo na cidade de Caruaru, naquele mesmo estado. Viveu muitos anos em Maceió, Alagoas, vindo a falecer naquela cidade, provavelmente em 1954. Folhetos de sua autoria foram publicados pela Luzeiro Editora, de São Paulo. Recentemente, a Editora Queima-Bucha, de Mossoró (RN), publicou o folheto A intriga do cachorro com o gato. Além disso, há edições de suas obras pela Catavento, de Aracaju (SE); Lira Nordestina, de Juazeiro do Norte (CE); Coqueiro, de Recife (PE), e por outras editoras.

Seus folhetos mais conhecidos são:

História da princesa Rosamunda ou a morte do gigante e A chegada de Lampião no inferno e A intriga do cachorro com o gato. As histórias de gracejos são um dos aspectos marcantes dos cordéis de José Pacheco, considerado um dos maiores cordelistas satíricos do Brasil.

Porém, o poeta se dedicou ainda a outros temas, como histórias de bichos, religião e romances."

Fonte: http://mateusbrandodesouza.blogspot.com.br/2011/02/jose-pacheco.html

Não consegui encontrar a data precisa do nascimento, nem do falecimento do poeta José Pacheco da Rocha.

O cordel em si, que foi reescrito por estar meio codificado e usar expressões muito antigas, ou mesmo com grafia equivocada, foi retirado do saite: http://www.jornaldepoesia.jor.br/pacheco.html

Bom, agora: Olhos à Obra!

Abraço,
Antônio Adriano de Medeiros




O GRANDE DEBATE DE LAMPIÃO COM SÃO PEDRO

AUTOR: JOSÉ PACHECO DA ROCHA

Para me certificar
Da morte de Lampião
Arrumei o matulão
E andei pra me acabar.
Não escapou-me um lugar
Do Brasil ao Estrangeiro;
Percorri o mundo inteiro
Procurando a realeza
Até que tive a certeza
Da morte do Cangaceiro.

Andei nas Areias Gordas,
Pilão Sem Boca e Macumba;
As Ribeiras de Cazumba
Estas eu remexi todas.
Passei na Várzea das Poldras,
Fui á Baixa da Folia,
Levei uma companhia,
Deixei no Bico da Pata;
Passei nas Brechas da Gata,
Dormi na Boca da Jia.

Fui à Serra do Cambão,
Desci na jumenta prenha;
Mandei Chico Tomás Lenha
No Engenho de Felipão.
Pindoba de Damião
Fica perto da Furada
- Lá deixei um camarada,
Caminhei mais meia légua;
Dormi na Baixa da Égua,
Perto da Tábua Lascada.

Depois eu fui na Quinzanga,
O Engenho de Seu Melo.
Subi para o Birimbelo,
Cheguei na Chã da Munganga;
Três Cacetes de Zé Panga
Já fica do outro lado.
Fui ao Cambito Quebrado,
Do Rodete de Pinheiro.
Deixei o meu companheiro
Na bargada dum sevado.

Passei na Chã da Risada,
Desci na Fazenda Mole;
Fui à Usina do Fole
De Bertolina Pelada,
Segui pela mesma estrada
Do alto da geringonça.
Do Tapado do Mendonça
Puxei para virador
E mandei um portador
Dormir na Boca da Onça.

E atravessei os mares
Montado em um planeta
Que ao som de uma trombeta
Vinha descendo dos ares,
Visitando aqueles lares,
Terra de santos e fadas.
Naquela mesma jornada
Encostei no arrebol;
Cheguei na Terra do Sol,
Na Casa da Madrugada.

Ela me deu um abraço,
Me prestou-me bem atenção;
Mandou chamar o Verão
No Reino do Mestre Espaço.
Depois chegou o Mormaço
E saiu muito vexado
Porque estava ocupado
No palácio da manhã,
Tratando da sua irmã,
Mulher do vento gelado.

Continuei a viagem
Com boa capa de luva
Porque a terra é de chuva
E mora Dona Friagem.
Seu palácio era na margem
Do rio Maior Relento;
Descansei no aposento
Da velha seca puxada
- Nessa noite a trovoada
Deu uma surra no vento.

No reino da Branca Aurora
encontrei a brisa mansa
que vinha trazer lembrança
À princesa Deusa Flora.
A Neve àquela hora
Em sua alcova dormia
Depois o sol lhe surgia
Desfazer-lhe do regaço,
Enquanto pelo espaço
A neve branca corria.

Pra saber de Lampião
Qual foi a parada sua
Subi à terra da Lua
Escanchado num trovão.
Encontrei um ancião
Velho, barbado e corcundo
Que vinha do fim do mundo
Me viu e foi me contando
Que viu São Pedro açoitando
Um espírito vagabundo.

Chegou no céu, Lampião
A porta estava fechada,
Ele subiu a calçada
Ali bateu com a mão.
Ninguém lhe deu atenção
Ele tornou a bater.
Ouviu São Pedro dizer:
- "Demore-se lá. Quem é?
Estou tomando café
Depois vou lhe receber."

São Pedro depois da janta
Gritou por Santa Zulmira:
- "Traz um cigarro caipira!"
Acendeu no de São Panta.
Apertou o nó da manta,
Vestiu a casaca e veio;
Abriu a porta do meio
Falando até agastado:
- "Triste do homem empregado
Que só lhe chega aperreio."

Abriu na frente o portão
Ficou na trave escorado,
Branco da cor de um finado
Quando avistou Lampião.
Mas com a trave na mão
Não temeu de lhe falar
E disse: - "Aqui não se dá
Aposento a gente mal,
Senão que entrar no pau
Acho bom se retirar!"

Lampião lhe respondeu:
- "Não venha com seu insulto!
Você é um santo bruto:
Que ofensa lhe fiz eu?
E mesmo o céu não é seu
Você também é mandado...
Portanto esteja avisado:
Se não deixar eu entrar
Nós vamos experimentar
Quem é que tem bom guardado!"

- "Você não entra, atrevido!"
São Pedro lhe disse assim :
- "Ingresso a quem é ruim
Nesta porta é proibido.
Não sabes que sois bandido
Roubador da vida humana,
Alma ferina e tirana
Coração cruel, perverso!
Como queres um ingresso
Nesta mansão soberana?"

- "É certo que fui bandido
Perverso, estrompa, voraz,
Porém, quem foi não é mais
É mesmo que não ter sido...
Mesmo eu sou garantido
Por um provérbio que tenho
Escrito sobre um desenho
Por pessoas elevadas,
O qual diz: - Águas passadas
Não dão volta a meu engenho."


— "Não quero articulação
Você aqui nada tem."
— "É como você também,"
Lhe respondeu Lampião:
"É porque do seu patrão
Você transmite um mandado,
Eu tenho visto empregado
Sair do trabalho expulso,
Sem direção, sem recurso
Por qualquer trabalho errado..."

Ali falou São Bernardo
Que também vinha chegando
- "Ô Pedro, ocê tá brincando
Com esse cabra safado?
Vá me chamar São Ricardo
E São Francisco da Penha;
Diga a São Tomé que venha
E chame São Juvenal,
Arranque um pau do quintal
E uma lasca de lenha!"

São Pedro ergueu-se nos pés
E disse de cara feia:
- "Pra dar num cabra de peia
Não precisa oito nem dez"
E gritou por São Moisés:
- "Vamos dar no bandoleiro!"
Saltou no meio do terreiro
Até preparar a faca,
Gritando: - "Quebra uma estaca!
Arranque um pau do chiqueiro!"

São Paulo estava na quinta
Mas ouvindo a discussáo
Apertou o cinturão
E botou a faca na cinta;
Encontrou Santa Jacinta
Que lá vinha no caminho,
E disse a Santo Agostinho
Arretorcendo o bigode:
- "Arréda que tu não pode:
Eu pego o cabra sozinho!"

Porém antes de pegar
Desceu um grande corisco
Jogado por São Francisco
Da porta do quarto andar;
Num tremendo ribombar
Um trovão também desceu,
O espaço escureceu
Veio um forte pé-de-vento,
Lampião neste momento
Dali desapareceu

Poeta tem liberdade
Sagrado dom da Natura
Conforme a literatura
Escreve o que tem vontade;
Também a propriedade
Precisa o dono ter,
Pelo menos vou dizer
- Se meu espírito não mente -
Poeta também é gente:
Também precisa comer.


José Pacheco da Rocha

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Cordel


Agradecemos, logo de início, às boas-vindas dos residentes originais desta casa de letras e cultura que é a Literacia, e ao convite a nós formulado pela anfitriã Ana Merij, pois se há um defeito que não temos, este é a ingratidão.


O DEBATE DO DIABO COM UM PADRE NO SERTÃO


Estando desprotegido
o meu querido sertão
com as mortes de Padim Ciço
e Padim Frei Damião,
quem apareceu por lá
foi o danado do Cão.

O rei da mal criação
chegou bem acompanhado
por uma corja de cabras
do reino degenerado:
de arruaceiro a ladrão,
de mentiroso a tarado.

Vi um bode endiabrado
que só berrava em inglês
chamando de língua morta
nosso amado português,
dizer que lá no sertão
só se fala o matutês.

Tomando uísque escocês
vi chegar macaco anão
ameaçando emprenhar
muitas moças no sertão,
povoando tal lugar
com os Macacos do Cão.

Talvez por educação
quis conversar com Tinhoso,
e a ele perguntei
se era um Cão majestoso
como Lúcifer, Mefisto,
ou outro diabo famoso.

O Diabo ficou raivoso
com a pergunta que fiz,
e disse: - "Meu nome é Minos,
do Inferno sou juiz.
E, se perguntar mais coisa,
te capo, zé infeliz!"

Sair dali logo eu quis,
pois chegara a segurança:
um gorila de dois metros
armado com uma lança,
e um sapo gigantesco
mostrando a língua e a pança.

Como eu não sou criança
tentava escapar ligeiro,
quando ouvi o Cão dizer:
- "Deixem o pobre, é beradeiro...
Mas diga-me cá, matuto:
onde mora o feiticeiro?"

Eu disse: - "Deus mandingueiro,
bruxo não tem no sertão."
E o Diabo respondeu:
- "E o mestre da ilusão
que vocês chamam de padre:
onde é seu casarão?"

Eu mostrei a direção
da casa paroquial,
e pra lá se dirigiu
a Caravana do Mal,
todos dizendo pilhérias
e muita coisa imoral.

Atrás da turba infernal,
à distância bem segura,
também eu fui ver a briga:
- Debate assim é cultura:
uma experiência dessas
é mais que grande aventura! –

Com um terço na cintura
o vigário apareceu
e, notando que era o Diabo,
o crucifixo ergueu.
Vendo a cruz, em debandada
toda a tropa então correu,

mas o Diabo disse: - "Eu
não sou um diabo qualquer!
Guarde os seus amuletos
que neles não tenho fé,
e saiba que está falando
com o Juiz de Lucifé!"

- "Me diga logo o que quer!" -
diz o padre, insatisfeito,
e assim responde o Diabo:
- "Me trate com mais respeito,
seu padreco vagabundo,
que agora eu sou Prefeito!"

- "Mas você nem foi eleito..."
- foi respondendo o vigário,
- "Sabe o que é eleição,
ou quer um dicionário?
Se bem que cá no sertão
só se vota em salafrário..."

- "Padreco, não seja otário,
veja que coisa singela:
matei prefeito e o vice,
tranquei toda a parentela.
Mais tarde vou passar lá
pra ver se sobrou donzela..."

Diz o padre: - "Coisa bela!
Fizeste uma boa ação.
Eu mesmo não sinto falta
de mentiroso e ladrão.
Para esses dois pecados,
saiba que tens meu perdão!"

Diz o Diabo: - "Seu merdão,
guarde-o para quem precisa,
e se disser mais besteira
vai levar é uma pisa:
se reincidir, eu capo,
pra ver se se ajuíza!"

E o padre diz: - "Quem bisa
no erro, logro ou engano,
é gente daquela terra
onde o Diabo é soberano...
Mais respeito com a cidade,
se não entra pelo cano!

Fique sabendo, tirano:
aqui tem moça direita!
Da inocência das pobres
malandro se aproveita,
e a grande humilhação
muita pobre se sujeita!"

E o Cão: "Vê se te ajeita,
seu padreco sem valor:
eu sei que em safadeza
tu és mestre, professor!
Faz juras de castidade
e sexo em lugar de amor.

E a mulher do doutor,
gostou ontem do sermão?
No rabo lhe empurrou,
sei até a posição...
De adultério o senhor
conhece qualquer lição."

Grita o padre: - "Sai, Tição!
Coisas da humana fraqueza...
As coisas do coração
são da nossa natureza:
ela gosta de oração,
se ajoelha com franqueza..."

Diz o Diabo: - "Que beleza!
Poetou que só o diabo...
Mas uma vez por semana
você lhe mete no rabo:
ela faz a doação
e escorrega no quiabo..."

- "Ô miserável, eu te acabo
se mais me falas assim,
dizendo essas baixezas
e caçoando de mim:
quem é mestre em safadeza
é teu povo, Coisa Ruim!"

- "Por barbas de Serafim
- se é que anjo é barbado -
já perdeu a compostura,
padreco mal educado?
Melhor andar com mulher
que ser um padre viado...

Mas eu vou ficar calado
pras coisas sexuais:
e porque juram pobreza
os que lhe serão iguais,
antes de ganharem o luxo
dos vinhos e castiçais?"

- "Da maldade és capataz,
e do ódio, alcoviteiro:
não vejo nada demais
em ter conforto e dinheiro
para pregar a Palavra
do Mestre que É verdadeiro."

- "Tudo bem, meu feiticeiro,
são coisas da realeza:
trepam em meio à castidade,
ricos louvando à pobreza:
são iguais aos políticos,
os mestres da esperteza.

Mas me diga com franqueza:
qual é a explicação
do fanatismo do povo
dessa parte da nação?
Não seria mais honesto
investir em educação?"

- "Dispenso sua lição:
guarde-a pra seus seguidores!
Padre Cícero e Damião
também tinham seus valores:
fanatismo no sertão
deve-se a muitos fatores.

São os principais atores
dessa antiga maldição,
isolamento, pobreza
e a colonização,
pois viemos pro Nordeste
no tempo da Inquisição."

- "Falou com inspiração,
dessa vez disse a verdade.
Pois reconheceu ser cúmplice
dessa infelicidade:
padre, foi a tua Igreja
que perpetrou tal maldade!"

- "Demônio, de falsidade
quem entende é o senhor!
A missão da Santa Igreja
sempre foi levar o amor
e a Palavra do Mestre,
nosso Jesus Salvador!"

- "Rá, rá, que encantador!
Eu conheço bem Jesus:
Ele morre de vergonha
de ver, sob a Sua luz,
os vendilhões retornarem
vendendo santinho e cruz..."

- "Tuas palavras de pus,
prenhes que são de maldade,
não podem pronunciar
com tal naturalidade
o santo nome Daquele
que pregou a piedade!"

- "Ora, ora... e é verdade?
O monopólio da fé...
Toda bondade do mundo
só pertence a Santa Sé...
- A astúcía dessa gente
causa inveja a Lucifé!"

- "Sabendo quem você é
- grande artesão da maldade -
desconfio da intenção
de sua súbita bondade:
me diga o que houve, Cão:
o que o trouxe à cidade?"

- "Padreco, na minha idade,
se conhece bem o mundo:
hoje o tal cristianismo
virou credo vagabundo,
e continuando assim
não dura mais um segundo.

Vejo charlatão imundo
pregar em nome de Deus,
em muitas seitas cristãs
ao Diabo adoram os seus;
dança sensual na missa,
a moral dos filisteus...

Esses negócios são meus,
vim tomar satisfação!
Vou atrás de Papa e Bispo
propor negociação:
fiquem com as coisas de Cristo,
a nós pertencem as do Cão!"

- "Desconfiei da intenção
do tal juiz infernal,
pois conheço sua história,
artífice maior do Mal:
então o seu interesse
é apenas comercial?"

- "É sim, padreco venal,
digo com sinceridade:
religião é comércio,
e nessa sociedade
cada um tem sua parte:
- respeitem minha metade!"

Nesse instante, na cidade
ouviu-se o som do trovão,
e dali sumiu na hora
o malfazejo do Cão.
O velho padre na rua
rezava qual doido à lua,
girando que nem pião.


Antônio Adrianao de Medeiros

Às vezes podemos parecer ingratos com alguém que quer nos ajudar ou pelo menos elogiar, quando não estamos preparados para receber tal ajuda ou elogio, que ás vezes um certo orgulho, uma certa vaidade - defeitos que combato em mim, mas não posso negar que os tenho, não querendo ser mais santo que os próprios santos, ou mais divino que a própria idéia de Deus ("vaidade das vaidades...", nos lembra o Eclesiates), quero dizer que, quando o presente poema, um rimance que poderia muito bem ser dependurado num fio de barbante e vendido numa feira nordestina qualquer, embora talvez não vendesse muito, pois bem, quando o presente rimance veio à luz, eu quis brigar com uma poeta. Seu nome é Julieta Lima, uma poeta das verdadeiras, autora de um dos sonetos mais belos que já li, A Prostituta de Luiz Vaz, essa poeta portuguesa disse naquela ocasião "isso não é um cordel", e eu reagi brabo, peixeira de doze polegadas bem visível sob a camisa desabotoada e o bafo de cachaça e a fumaça de cigarro pesado, o boró de fumo de rolo, saindo belas ventas, o barbatão sertanejo bufava contra "o preconceito contra o cordel" que vira, quase alucinado, em suas palavras na verdade mui gentis. Retrucou a poeta Julieta Lima através de outra mensagem d´'além-mar oriunda, com a mais serena placidez das almas verdadeiramente sábias e poéticas, que respondia apenas porque sabia que eu era poeta (sic), mas que o que tentara dizer foi que o aludido poema, cujo nome é O Debate do Diabo com um Padre no Sertão, fugia em muito ao que se costuma chamar de poesia de cordel, pois era um poema filosófico, ainda que satírico, e não uma sátira banal e pobre de conteúdo como se vê nos cordéis que se vendem nas esquinas ou feiras por aí. Fiquei sem pernas, sem chão, sem peixeira, sem cachaça e sem boró, mas felizmente não sem palavras para me desculpar à poeta Julieta Lima, e o fiz.

Porque se idealiza muito o cordel, ás vezes, e talvez nessa idealização é que exista um preconceito embutido, ou não, de que é bacana mas não passa de um cordel, "é bom, mas é cordel", poema pra ser vendido em folheto mas nunca num livro publicado só de poemas no estilo cordelista, ou pelo menos uma ilusão, de que "sendo cordel é bom, pois é  expressão da verdadeira alma do povo nordestino", etc., e baboseiras afins. Isso é falso, nem todo cordel é bom, ´há verdadeiras ´porcarias, com erros grosseiros de gramática, expresão de preconceitos grosseiros ou de julgamentos infundados,  além de roubos de autoria e desrespeito por direitos autorais na venda de cordéis. Eu mesmo fui mandar uns poemas pra um parente meu, e depois eu soube que ele estava vendendo (tem uma impressora lou coisa parecida por lá) os poemas em folhetos, com meu nome lá, mas nem sequer mandou unszinhos para mim, ele que tem tantos. Imagine aí o que se passa pelo Brasil afora. Não sei se se tem conhecimento sobre a briga de autoria do Romance do Pavão Misteriozo: há dois auotres, um para São Paulo, outro para o Nordeste, pelo menos para a Paraíba, e pouco importa que tenha sido escrito originalmente na Paraíba, em São Paulo só se conhece o poema como sendo da autoria daquele outro lá. Qualquer dia eu vejo quem são, agora não dá, teria que buscar um na internet e procurar o outro que tenho guardado nem sei aonde.

Há que se fazer uma ressalva: soube que a Editora José Louzeiro vende uns folhetos de cordel pela Internet, e pude ver alguns, inclusive As Proezas de João Grilo, e são não folhetos, mas livretos de qualidade, maiores que os folhetinhos, e com alguma informação sobre o autor, só não sei como a referida editora vende o tal Pavão - falo assim do Pavão Misteriozo porque tenho algo de sentimental por aquele rimance, e uma idéia interessante sobre a motivação, ou a verdadeira causa de sua gênese, uma coisa simples mas que me parece ninguém notou ainda, qualquer dia eu conto essa história, que é besta como toda história sentimental, mas faço um suspensezinho pra valorizar, que aprendi isso.

Eu não falei ainda sobre debate de hoje? Como é triste se meter a escrever sem saber escrever, roubando assim descaradamente o precioso tempo alheio...

O Diabo vem ao sertão, se é que um dia ele saiu de lá... Não um diabo qualquer, que são muitos os diabos, mas um diabo poderoso, um diabo que não foge da Cruz de Cristo, um diabo de antes de Cristo, um deus que virou diabo, um Juiz dos Infernos pré-cristãos, o deus Minos, aquele que transfromava em ouro tudo que tocavam e que Dante colocou como porteiro do Inferno na Divina Comédia. E é naturalmente um diabo muito culto, e justo, ele não permite sequer que a corja de diabos menores que o segue faça qualquer coisa contra mim quando o importunei com minhas baboseiras de matuto sertanejo que não percebe quando é inconveniente (essa é a condição sine qua non do matuto, não notar que não cabe ali, e ficar se achando todo importante quando na verdade comete uma gafe sem precedentes).

Pois bem, mas acreditando que o sertão só tem gente boa e pura, e os santos padroeiros, e as santas padroeiras (será que agora seremos obrigados a dizer "santas madroeiras" doravante?), acreditamos que o velho Cão só pôde chegar ali depois das mortes dos santos Padre Cicero e Frei Damião, e que o posto de santo estando vago, nessa vacância de poder, quem está querendo se apossar do posto é o Arqui-rival do Arcanjo Miguel, e Ele - maiúsculas necessárias aqui, por educação e concordância, não por crença ou respeito, ressalvo). O linguajar diabólico é prenhe de metáforas, e ele, por julgar que qualquer religião, ou qualquer sistema de crenças, na verdade trata de feitiçaria - Isso é idéia do Diabo, leitora: isso não fui eu que pensei, não! Não tá vendo que de uma pobre cabeça sertaneja e católica dos de Medeiros de Santa Luzia ia sair uma coisa dessas! Isso eu ouvi do Cão. E dou as provas: foi um alemão, gente que entende dessa coisas que me botou a perder, foi Thomas Mann em Doutor Fausto quem, pela boca do Cão Maioral, disse uma coisa absurda dessas! Que toda religião e feitiçaria, e na verdade, em seu íntimo, trata do Diabo, não de Deus, e que o Diabo é o verdadeiro causador de todas as religiões, com ou sem maiúsculas. É bom dizer isso antes que façam uma procissão e acendam as fogueiras, que o São João tá vindo aí...), pois bem, por pensar assim, ao perguntar pelo bom e dedicado pároco da cidade, ele diz - "Onde mora o feiticeiro?" Porque as coisas são assim, há o eterno retorno, e hoje em dia já tem os psiquiatras, que talvez sejam os feiticeiros da Ciência, assim como temos os feiticeiros de Deus...

Eu gosto da Santa Madre Igreja, e a respeito, e lá em minha Santa Luzia a única coisa boa que sobrou dos velhos tempos foi o Coral da Igreja, e quando vou a uma missa ali vale por dez, cem missas, em qualquer outro lugar. Porque não sou ingrato, e fui educado pela Igreja Católica, e não vou cuspir no prato que me alimentou tão bem. Gosto muito daquele pão e daquele vinho que me deu o saudoso padre Jerônimo Lawen - Deus o tenha! - e  as professoras e irmãs do Colégio das Freiras de Santa Luzia, sertão do seridó paraibano, ligada à Irmandade de Santa Terezinha, do Ceará. Por isso, o padre que vem discutir com o Diabo é uma padre meio estranho, um padre que em certos  momentos, chega até a elogiar o Cão... Quando sabe que ele tomou certas atitudes políticas bem radicais, por exemplo, fica até estanho ver que o padre gostou... Mas também quando o padre faz uma autocrítica dizendo que a Santa Madre igreja, porque colonizou o sertão conforme as leis da Inquisição, tem uma certa responsabilidade sobre o modo de pensar daquele povo, que é, talvez, o meu também, no mais profundo. Ora, por que uma presença tão notável do Diabo, se não for um Diabo renascentista batendo á minha porta?

- Pode entrar, Senhor Cão, fique à vontade. Só não digo que a casa é sua, gentileza natural a qualquer anfitrião, porque alguém mais pode ouvir. não entender a gentileza, sair espalhando e pegar mal pra mim...

Seim que hoje é fácil apontar os erros e culpá-la por muita coisa, como se a Igraja Católica, um obra humana, pudesse ser tão Perfeita como a Idéia de Perfeição que ela prega, mas quem civiulizou o Ocidente e mantém até hoje um aura boa de mistério e caridade, sem aparcer muito praticando essa caridade, foi é a Santa Igreja, e o que tem aparecido como opção, a meu ver, tem sido pior.

Bom, vou terminar, juro, se não não fica mais nada pro cordel, ou pro rimance. Certa vez, quando eu era jovem e metido a intelectual, lá no Amarelinho da Cinelândia, com namorada carioca, chopp do bom e tudo mais, discutindo pra resolver de uma vez por todas os problemas que afligiam o Brasil e o Mundo, ouvi uma coisa interessante sobre a Colonização do Brasil: que na verdade são três brasis, colonizados cada um de acordo com o pensamento europeu de determinada época, e que pensa e age ainda, em seu mais profundo, de acordo com tal colonização: O nordeste foi colonizado pela Inquisição; o sudeste pelo iluminismo; e o sul pela revolução industrial. Lembro que, naquela tarde, perguntei: "E o Norte, não existe?"  houve algumas respostas, umas brincalhonas, tipo "estamos falando do que já foram colonizados" (talvez se tenha empregado um termo mais forte, mas você, leitor, não pensa que eu tão doido assim, pensa?), houve uma boa: "os americanos não são europeus, e não chegaram de vez, ainda".

Notar que, sendo um cordel do início de meus escritos, é em sextis, eu tinha medo e preguiça, nessa ordem, da septilha, da obrigação de rimar mais um verso ali, o quinto com o sexto, e deixava a septilha pra o último verso, "um verso a mais como presente ao leitor", inventou o  esperto medroso preguiçoso, na época. Mas a pegada da deixa, já tinha, a obrigação de começar sempre uma  estrofe rimando o primeiro verso com o último da estrofe anterior. Isso é sagrado pra mim, principalmente depois que foi inventado por Silvano Pirauá, poeta da cidade do Teixieira, bem pertinho ali de Santa Luzia, subindo a serra depois de Patos, pros lados do Pernambuco de Lampião.  Você leitor, se for do litoral, pode entrar antes, logo em Taperoá, mas eu não, onde estiver, mesmo aqui no litoral, primeiro desço o Planalto da Borborema pela Transamazônica, passo em Santa Luzia, depois em Patos, e  só então subo de novo a serra pra ir tomar a bênção ao Pirauá, porque o sagrado é sempre sagrado.

Grato pelo espaço para escrever e pensar,grato pela leitura,um abraço.

Antônio Adriano de Medeiros