Antônio Adriano de Medeiros
O
pobre cangaceiro Lampião é uma alma penada: no cordel tradicional, ele é
constantemente expulso tanto do Inferno, como do Céu, como do Purgatório; onde
o coitado vai, tem confusão, tem briga, dizem os cordelistas
"clássicos". Apesar de existir um coco de improviso intitulado
"Futebol no Inferno", onde se enfrentam "o quadro de Satanás e
aquele de Lampião", no cordel clássico, o pobre cangaceiro degolado ao
lado da musa Maria Bonita vaga perdido no caos etéreo após a morte. O presente
cordel tem a finalidade de tratar o Rei do Cangaço com o devido respeito,
e enfim dar um descanso poético à alma do Rei do Cangaço e de sua musa, Maria
tão Bonita.
Usei
'Missário por "emissário", pra facilitar a métrica; por
tratar-se um emissário de um deus, a maiúscula é necessária, daí a palavra
"'Missário", que cai muito bem, por sinal. Há menção ao Livro Capa
Preta de São Cipriano, que também merece maiúsculas. É lembrado o fato de
Lampião ter sido "promovido" a Capitão do Exército Brasileiro quando
se precisou combater os perigosos comunistas da Coluna Prestes; o cangaceiro
recebeu as armas por intermédio do Padre Cícero do Juazeiro, mas nem bem saiu
do Juazeiro do Padim Ciço preferiu continuar um bandoleiro bem armado.
"Pabo" é pronúncia popular para "pábulo", usado pra
permitir uma rima.
Não
quero criticar os cordelistas de qualidade, como Leandro Gomes de Barros, Chico
das Chagas, Camelo, e outros que existem, mas acho que quem escreveu sobre
Lampião não foi muito feliz tratando o Rei daquela forma acintosa...
Menciono
pois duas expulsões históricas de Lampião, uma do Inferno:
"A Chegada de Lampião no
Inferno
(José Pacheco)
Um cabra de Lampião
por nome Pilão Deitado
que morreu numa trincheira
um certo tempo passado
agora pelo sertão
anda correndo visão
fazendo malassombrado.
E foi quem trouxe a notícia
que viu Lampião chegar
o inferno nesse dia
faltou pouco pra virar
incendiou-se o mercado
morreu tanto cão queimado
que faz pena até contar...."
E
também cito uma expulsão do cangaceiro-mor do assim chamado Céu, essa um cordel
de dez versos de sete sílabas, um dos mais belos que já ouvi, gravado no meio
da rua da minha querida cidade de Patos, cidade da Peleja fundadora de todas as
pelejas, aquela de Ignácio da Catingueira e Romano de Mãe d'Água, ocorrida em
1870, ali no sertão paraibano das Espinharas, onde também nascem rosas raras.
Ouvi-o numa gravação dos Discos Marcus Pereira, e infelizmente não me
recordo de nehuma décima inteira, nem do autor, só de detalhes, como São
Pedro deseperado gritando pra outro santo se armar do jeito que pode:
"gritando pegue uma estaca, arranque um pau do chiqueiro"; a idéia de
um chiqueiro celestial é fantástica, porque ali galinhas seriam divinas... Há
também uma hora em que Lampião manda chamar Jesus e a Santa Maria é que vem,
mas ela manda a Virgem voltar, pois não veio falar com moleca de recado, e sim
com O Dono do Negócio (dei uma enfeitada aí, os termos são mais leves, embora
queiram,enfim, significar isso mesmo).
Mas
segue, enfim, segue nossa colaboração, ora imodesta por licença poética, em
septilhas de sete sílabas, com a pegada da deixa, que é esse negócio de começar
sempre uma estrofe rimando o primeiro verso com o derradeiro da estrofe
anterior:
A VERDADEIRA CHEGADA DE LAMPIÃO NO
INFERNO
Antônio Adriano de Medeiros
Uns dizem que no Inferno
quando chegou Lampião
houve uma briga danada
- terrível recepção:
diabos armados de tora
ousaram botar pra fora
quem foi terror do sertão!
Mas quem bem conhece o Cão
sabe-o muito inteligente:
pra cumprir sua missão
ele é muito diligente,
e, como gosta do ócio,
ao ver chegar um sócio
ele ficou foi contente...
Quem conhece o meu repente
sabe-o sempre baseado
n'alguma prova concreta
- não faço nada inventado! -
Pois agora vou contar
como pude m'inteirar
do que aqui é narrado.
Eu estava no roçado
cuidando da plantação,
encontrei uma mandrágora,
cavei mais fundo no chão;
logo uma luz se acende
e aparece um duende
que era 'Missário do Cão.
Me ofereceu a mão
dizendo:"- "Não tenha
medo!
Cá não vai chegar ninguém,
pois ainda é muito cedo.
Pai me mandou lhe falar
pra você desmascarar
a todo falso aedo."
Comecei rezar o Credo,
duende ruborizou.
Eu senti pena do pobre
que tão contente chegou...
Qual amigo que se preza
interrompi minha reza,
e o 'Missário falou:
- "Meu Papai só me mandou
para vossa senhoria
porque sabe que o senhor
gosta de fazer poesia,
e quanto em verso labuta
não faz qual gente matuta
que só canta porcaria..."
Defendi a cantoria
do poeta popular
que escreve para o povo
que tem curvo o seu pensar:
quem não foi em boa escola
não faz bons versos, esmola
preconceitos pra rimar.
Vi duende se alegrar
e me propor um bom trato:
ele iria me contar
o que ocorreu de fato
quando o grande Lampião
chegou na terra do Cão,
pra qu'eu fizesse o relato.
Eu disse ser muito grato
com tamanha distinção,
e prestei um juramento
pondo a sinistra mão
sobre um Livro Capa Preta
assinado por Capeta,
rubrica de Ciprião.
Vi dizer que Lampião
quando chegou no Inferno,
o Chefe foi recebê-lo
trajando elegante terno.
Abraçou-o Satanás,
nomeando-o capataz
- um cargo nobre, eterno!
Com tal abraço fraterno
quatro dentes de Vampiro
nasceram em Lampião,
e ouviu-se um grande tiro.
Quand'o Diabo se cortou
Lampião o imitou:
- "Tu te feres, eu me
firo!"
E cada um deu um giro,
o sangue se misturou,
e com o tal ritual
um pacto se celebrou.
Ao receber um tridente
com a ponta incandescente,
Capitão se animou.
Satanás assim falou:
- "Tu és um Mestre do Mal!
Por isso que te promovo
agora a Marechal.
Tu terás autoridade
para perpetrar maldade
por todo o reino infernal.
E para que, afinal,
tenha a obra seu acabo,
eis que o Rei do Cangaço
ganhou um vistoso rabo.
E, ao vê-lo transformado,
diz Satã, emocionado:
- "Estás um perfeito
diabo!"
Lampião quis ficar pabo,
porém se decepcionou:
passand'a mão na cabeça,
lá chifres não encontrou.
Se zanga o Rei do Cangaço:
- "Não me faça de palhaço:
quem os meus chifres roubou?"
Satanás então chamou
pra si Maria Bonita,
dizendo: - "Eu essa noite
vou dormir com a Maldita.
Logo os chifres aparecem:
uma polegada crescem
toda vez que ela grita".
Maria quis fazer fita
ensaiando protestar,
mas Satã disse pra ela:
- "Não há de que reclamar:
pra te saciar, mulher,
Belzebu e Pau-em-pé
também vão participar".
Os dois foram passear,
e eis que logo anoitece.
Lampião vai-se deitar;
tenta, mas não adormece.
E, nem bem passa uma hora,
obra a graça a tal senhora:
par de chifres aparece.
E quando o dia amanhece,
ainda de madrugada,
Lampião mede seus chifres:
dezessete polegada!
Mais tarde chega Maria
que iguais chifres trazia,
e também fora enrabada.
Tornou-se diaba danada
com muito contentamento.
Satisfez à Vil Trindade
que, por agradecimento
a ela e ao compadre,
nomeou Maria madre
para gerir o convento.
Ali se presta tormento
aos pastores e freiras
que quando estavam vivos
fizeram suas besteiras;
e a quem, na Inquisição,
inventou acusação,
mandou gente pras fogueiras.
De Lampião nas fileiras
ardem os vis coronéis:
os políticos do Nordeste
e seus capangas fiéis;
e, chamadas "mariposas",
suas filhas e esposas,
ladras de muitos mil réis.
E quem escreveu cordéis
dizendo que Lampião
ao chegar no Inferno
travou briga com o Cão,
pode ir-se preparando:
ele o está esperando
com o tridente na mão!
Eu não sou de invenção,
só conto o que foi contado
por um duende que viu
tudo que foi relatado.
A quem veio até aqui,
só resta me despedir,
e dizer: "Muito obrigado!"
Antônio Adriano de Medeiros
Seja bem vindo Adriano. Brilhante estréia!
ResponderExcluiranamerij
This article helps me a lot. Nice work!
ResponderExcluirEspectacular poema, meu amigo!
ResponderExcluirMuitos abraços!
Jorge
Muito boa estréia e sabendo do grande conhecimento dele sobre o Sertão, aguardo novas colunas ricas como esta inicial.
ResponderExcluirabraços
Oswaldo
Nossa, que presentão de feriado!Parabéns, Adriano! parabéns Literacia!
ResponderExcluirBelvedere